Orelhudo e de cauda nua: enigmática espécie de tatu é confirmada no Pantanal

Pouco conhecida pela ciência e de raro avistamento, a maior espécie de tatu do gênero Cabassous teve registros da sua presença confirmados pela primeira vez no Pantanal. Trata-se do tatu-de-rabo-mole-grande (Cabassous tatouay), que até então tinha ocorrência confirmada na Mata Atlântica, Caatinga, Cerrado e Pampa, entre estados do leste e sul do Brasil. A espécie, assim como o tatu-canastra (Priodontes maximus) – maior e mais rara espécie de tatu do mundo –, costuma viver em ambientes florestados, tendo raras ocorrências em áreas degradadas. 

A confirmação inédita da espécie no Pantanal acaba de ser publicada em artigo da última edição da Edentata, revista científica e de divulgação do grupo de especialistas em tamanduás, preguiças e tatus da Comissão de Sobrevivência de Espécies da União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN SSC, da sigla em inglês). 

Maior espécie do gênero Cabassous, tatu-de-rabo-mole-grande ainda não tinha ocorrência confirmada no Pantanal. Ilustração: Gabriela Güllich

“Sua presença no bioma parecia duvidosa, sem registros confirmados”, relata trecho do artigo. 

O estudo, que chama a atenção para a inclusão da espécie na lista de mamíferos de Mato Grosso do Sul, assim como para a importância da conservação da área de transição entre biomas, compilou registros do animal em vida livre entre 2013 e 2021, na região ocidental do estado, que compreende partes do Cerrado e Pantanal. 

No total, a pesquisa cobriu mais de 16 mil km² compostos tanto de savanas secas quanto de inundadas sazonalmente. “As savanas são um mosaico de pastagem, pastagem nativa, fragmentos de floresta e vegetações típicas”, afirma o artigo. 

Os registros que integram o estudo foram obtidos através de levantamento de carcaças de animais em estradas, armadilhas fotográficas e observação direta. Os dados de animais mortos nas estradas, especificamente, são do Instituto de Conservação de Animais Silvestres (ICAS), que desde 2013 monitora o impacto de colisões veiculares na vida selvagem na BR-262 e MS-339, ambas rodovias em território sul-mat0-grossense. 

No total, a pesquisa confirmou 12 registros do tatu-de-rabo-mole-grande na área de estudo, tendo oito sido registrados no Cerrado e quatro no Pantanal. No Pantanal, três dos registros ocorreram em Aquidauana (MS) – um deles identificado em observação direta e os outros dois em armadilhas fotográficas – e um em Miranda (MS) – identificado a partir de uma carcaça na BR-262. 

“Nós confirmamos pela primeira vez a presença do C. tatouay no Pantanal, com registros nos ambientes de transição entre Cerrado e Pantanal”, conclui a pesquisa, afirmando que o único registro prévio da espécie no Pantanal não estava dentro dos limites do bioma, segundo mapas do IBGE. 

Pesquisadores confirmaram quatro registros do tatu-de-rabo-mole-grande no Pantanal sul-mato-grossense. Foto: Reprodução/ICAS

Os tatus e os Cabassous

Os tatus pertencem à superordem dos Xenarthra, a quem também pertencem as espécies de tamanduás e bichos-preguiça. Encontrado na América do Norte, América Central e América do Sul, no Brasil os tatus ocorrem em mais de 10 espécies. 

Dentro da superordem dos Xenarthra, que é considerado um dos grupos de mamíferos mais antigos e pré-históricos, o tatu-de-rabo-mole-grande integra a ordem Cingulata – na qual estão todas espécies de tatus existentes –, e mais especificamente o gênero Cabassous

Neste gênero, além do tatu-de-rabo-mole-grande, estão outras quatro espécies: o tatu-de-rabo-mole do Chaco (Cabassous chacoensis); o tatu-de-rabo-mole da Centroamerica (Cabassous centralis); e os tatus-de-rabo-mole-pequeno, até recentemente identificado apenas como uma espécie, mas que foram desmembrados entre Cabassous unicinctus e Cabassous squamicaudis.

Entre os Cabassous, a principal característica morfológica é a cauda sem cobertura, que justamente dá origem ao nome popular “rabo-mole”. Ou seja, suas caudas não são completamente cobertas pelos escudos dérmicos que geralmente formam as carapaças dos tatus. As espécies desse gênero também são conhecidas por terem entre 11 e 14 bandas móveis na carapaça e pelos seus antepés. “Que exibem garras robustas no terceiro e quarto dígitos (dedos)”, explica outro trecho da pesquisa. 

O que torna o tatu-de-rabo-mole-grande tão diferente das demais espécies deste gênero, primeiro, é o tamanho. A espécie é a maior das cinco que integram os Cabassous, podendo o seu tamanho médio chegar a 47,9 cm, com 4,8 kg. Em segundo lugar, estão as orelhas, igualmente grandes, que podem medir em média 4,1 cm. 

“[O padrão] de escamas na testa, orelha grande, o tamanho do corpo são as diferenças mais básicas para a gente observar o tatu-de-rabo-mole-grande”, explica a ((o))eco o primeiro autor do artigo, o biólogo Gabriel Massocato, que atua há mais de 10 anos no Projeto Tatu-canastra, do ICAS.

Vista dorsal da cabeça das espécies do gênero Cabassous. Tatu-de-rabo-mole-grande na parte inferior da extrema direita. Foto: Reprodução/Taxonomic revision of the genus Cabassous McMurtrie, 1831 (Cingulata: Chlamyphoridae), with revalidation of Cabassous squamicaudis (Lund, 1845)

No Brasil, a espécie ocorre nas regiões nordeste, leste, centro-oeste e sul. E também há registros do tatu-de-rabo-mole-grande no noroeste do Uruguai, nordeste da Argentina e sudeste do Paraguai. “A espécie é relatada na Mata Atlântica, Caatinga, Cerrado e Pampa”, afirma o artigo, ao mencionar que outros pesquisadores já tinham previsto a ocorrência da espécie no Pantanal, mas até então sem confirmação.

Com uma dieta especialista insetívora, o tatu-de-rabo-mole-grande se alimenta apenas de insetos, principalmente formigas e cupins. Por comida, ele faz buscas tanto na superfície quanto no subsolo. Já sobre a rotina, os poucos registros do mamífero na literatura sugerem que ela pode ser noturna ou diurna. 

“Eles tendem a consumir insetos específicos, não tem uma maior diversidade. Enquanto que outras espécies, como tatu-galinha, do gênero Daypus, já tem uma dieta insetívora generalista, consome vários tipos de espécie, como formigas, cupins, besouros, larvas de besouros”, explica a ((o))eco o segundo autor da pesquisa, o biólogo Mateus Yan, mestrando em Ecologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). 

Registros do tatu-de-rabo-mole-grande em vida livre. Foto: Reprodução/ICAS

Incógnitas para a ciência

Pouco conhecido pela ciência, o tatu-de-rabo-mole-grande enfrenta dificuldades para ser reconhecido quando é encontrado, fenômeno que costuma ser raro. “É uma espécie, a gente acredita, que é muito fossorial (passa a maior parte do tempo embaixo da terra), então é difícil você observar”, comenta Massocato. 

A semelhança com outras espécies do gênero Cabassous ainda faz com que registros prévios possam ter sido falsos, aponta trecho da pesquisa. O tatu-de-rabo-mole-grande, com base no número de artigos publicados sobre a espécie, é uma das que menos foi estudada”, conta Yan. E nas pesquisas que de alguma forma mencionam a espécie, diz ele, a maioria não a tem como alvo. “São estudos de levantamento de mamíferos em que a espécie acaba ocorrendo”, acrescenta. 

A falta de artigos científicos e publicações-alvo sobre essa espécie, associado às suas características biológicas, faz com que o tatu-de-rabo-mole-grande seja considerado difícil de ser estudado e uma das mais raras espécies de ser avistadas entre os tatus. 

“Quase nada tem de informação, são poucos estudos. Eu acho que por conta da raridade [de avistamento] da espécie”, completa Massocato. 

Tudo isso faz com que figure entre os déficits de informação da espécie um que é primordial para a elaboração de medidas de conservação: a tendência populacional. Na lista vermelha de espécies ameaçadas da IUCN, por exemplo, o tatu-de-rabo-mole-grande é enquadrado como “Menos Preocupante” para o risco de extinção, mas os dados sobre o crescimento ou declínio da sua população são desconhecidos. 

Área até então conhecida da ocorrência do tatu-de-rabo-mole-grande e outros do gênero Cabassous na América do Sul. Foto: Reprodução/Taxonomic revision of the genus Cabassous McMurtrie, 1831 (Cingulata: Chlamyphoridae), with revalidation of Cabassous squamicaudis (Lund, 1845)

“Em várias listas estaduais do Brasil ela tem dados deficientes. Como essas populações estão, o que ameaça de fato a espécie, como que essas populações ocorrem em cada bioma a gente não sabe”, comenta Yan ao mencionar que informações básicas como o padrão de atividade do tatu-de-rabo-mole-grande ainda é desconhecido. 

Em meio a escassez de dados, o pesquisador relata que o que se sabe é que, além de atualmente ser considerada pouco preocupante para a extinção, a espécie possui uma grande distribuição no País. “Mas se a gente pegar alguns pontos locais, ou em determinados biomas, pode ser que a espécie esteja criticamente ameaçada por conta dessa falta de registros”, esclarece ele, destacando a inexistência de artigos que demonstrem a densidade e tendência populacional da espécie. 

“Para o tatu-de-rabo-mole-grande, somente com um trabalho, um estudo de campo, uma pesquisa, a gente vai conseguir falar mesmo se o animal é raro ou é só raro de ser observado”, diz Massocato.

Áreas de transição, corredores naturais de biodiversidade 

Assim como o tatu-canastra (Priodontes maximus), o tatu-de-rabo-mole-grande também costuma viver em ambientes florestados. Em áreas muito degradadas ou utilizadas intensivamente por atividades agrícolas, pesquisadores que já estudaram eventualmente a espécie relatam que ela se torna rara, praticamente não existente.

Nesse sentido, o artigo recém publicado reforça a importância de áreas de transição para a biodiversidade. “Elas estão proporcionando que as espécies de ambos os biomas consigam se conectar, interagir e conseguir a expandir as suas áreas de ocorrência”, comenta Yan. 

O desenvolvimento de estratégias de conservação nessas regiões, especialmente para áreas que sofrem conversão de vegetação nativa para pasto e agricultura, se torna um caminho importante para a manutenção da biodiversidade. Retrato disso é o que ocorre no Pantanal Cerrado, que, respectivamente, entre 1985 e 2021 perderam 1,9 milhão e 27,9 milhões de vegetação nativa. 

“Se você avança com o desmatamento, plantação, agricultura, alterando esses ambientes, você está perdendo essas áreas de transição e, consequentemente, vai estar isolando essas espécies […], a gente pode estar causando a extinção em curto prazo dessas espécies”, acrescenta Massocato.

O fato de um dos exemplares de tatu-do-rabo-mole-grande do Pantanal ter sido encontrado já morto na BR-262, em Miranda (MS) – além de outros três encontrados mortos no Cerrado –, também leva os pesquisadores a considerarem as rodovias como outra ameaça possível para a espécie. “[Imagina] uma área cheia de pasto, de campo aberto. A espécie precisa cruzar isso e quando ela cruza para ter acesso a um outro fragmento florestal, ela acaba passando pela rodovia”, explica Yan. 

Além da inclusão na lista de mamíferos de Mato Grosso do Sul, a pesquisa recém publicada também enfatiza a necessidade de novas pesquisas na região, tanto no Pantanal quanto na sua área de transição com o Cerrado, para entender a distribuição, associação de habitats e a ecologia desse mamífero enigmático que é o tatu-de-rabo-mole. 

“É importante para começar a propor estratégias de conservação e dedicar esforços para estudos dessa população na região”, declara o biólogo. “Para política pública, esforços estratégicos de conservação das espécies, dos biomas, esse achado mostra que é muito importante a conexão entre os biomas”, conclui Massocato.

Registro do tatu-de-rabo-mole-grande no Pantanal sul-mato-grossense. Foto: Reprodução/ICAS

Fonte: ((o))eco Jornalismo Ambiental, 05 de janeiro de 2023.

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